A vida tem dois lados. Hoje confrontei-me com o lado de um dos lados. Confuso. Sim, é como me sinto.
Mudei de casa cerca de dez vezes, mudei de escola cerca de dez vezes. Mudei de namorada cerca de cinco vezes, de amor cerca de três. Encontrei cerca de vinte novas pessoas sem as quais não seria aquilo que sou hoje. Para o bem e para o inverso.
Costumava pensar que estava de alguma forma assombrado, -não é normal andar sempre de um lado para o outro, qual nómada em casa de papelão. Lembro-me de ter cerca de oito anos e pensar que não queria crescer nunca. Brincava aos grandes com a minha Irmã mais nova, mas tinha consciência que era tão feliz que eu, não queria crescer nunca. A casa, cheia de amor, era visitada por discussões infindáveis. Tenho sorte de não me lembrar de quase nada até aos dezasseis anos. Memória selectiva, dizem eles. A falta de vontade, e não a incapacidade, de relembrar lembranças escuras. Pálidas.
Lembro-me que muitas das crianças que eu conhecia sonhavam em crescer, e eu sempre -quem me dera não crescer nunca. Se calhar é por isso que sou pequeno. Dormia todo enroscado porque diziam que dormir esticado fazia crescer. E eu não queria crescer, nunca. Por isso quando me perguntavam o que queria ser, dizia -cientista. -E curar as doenças do mundo. Mal sabia eu que as maiores doenças são aquelas sem diagnóstico. A minha mãe acenando a cabeça, toda ela orgulho... A professora da primária, muito querida, que um dia me puxou as orelhas, todo eu espanto -Há pessoas inteligentes, e outras espertas, tu és inteligente e esperto. Despertou-me a atenção por alguns momentos, mas depois tocou o sino e eu queria era brincar e não crescer, nunca. Não queria ser inteligente nem esperto. Os professores, no ciclo: és muito inteligente mas só usas a inteligência para o que não interessa. Mas o que é que interessa, afinal? E lá ia eu para o recreio, jogar à bola, andar á pancada, comer pães com "chóriço".
Memória selectiva: Brincar aos carrinhos com o meu irmão na rua, na berma do passeio, se caísse, voltava a trás. Jogar á bola com meias enroladas no corredor de casa. -Ganda sorte que não temos vizinhos em baixo. E os jogos intermináveis no tapete com os bonecos dos bolos de anos. -Tocou na mão, penalti. O mundo era aquilo. Os grandes não se sentam no chão, os grandes nunca ficam em casa a ver televisão. Os grandes não saem á meia-noite de casa para ir jogar á bola. A dois. A coisa que mais me trás quente adentro é a lembrança de ir para a escola de mãos dadas com a minha Irmã mais nova, cumprimentando toda a gente na rua: "Bom dia!" e levá-la á sala. Toda ela era vergonha. Eu batia, abria-lhe a porta e deixava-a entrar. Para mim, nada de especial. No dia a seguir, "Mano, levas-me á sala?".
Agora estou em casa. Senti-me abandonado e o meu mano aqui atrapalhado. Afinal éramos cinco, mas sempre fomos quatro muito juntos, visto que a mais velha decidiu cedo: Quero ser grande. Nós, agarrados ás cordas do coração, sempre lutamos por um futuro melhor e com o tempo ele veio. Vim de vez e voltei. Portugal. Vim outra vez. Alemanha. Destino, diria eu. Estou melhor que nunca porque era aqui que queria estar. Melhor que nunca e no entanto sinto que vocês me faltam. Tanto. Espero que me entendam. -Estava farto de viver ás costas sem me poder abraçar. Mas vocês ficaram, não para trás, mas também nem sei se para a frente, porque tenho tanto medo que se esqueçam, de mim. Tenho saudades vossas, de todos vocês. Pela primeira vez olho de frente para a saudade. Em toda a minha vida, de poucos anos preenchida, deixei migalhas para trás. Mas era eu o pão e vocês ficaram com um pedaço de mim. Cada um. Ainda bem. Agora faço parte de vocês, porque eu, eu sou massa que vocês moldaram. E embora não me ache nada de especial, o facto de me abraçarem faz-me sentir orgulhoso por vos ter. Em mim.
1 comentário:
O melhor comentário que podia fazer a este texto é o texto que escrevi à momentos no meu cantinho.
Sorriu agora por o ter escrito antes mesmo de ter lido este texto.
Gostei mais uma vez.
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